sexta-feira, 3 de junho de 2011

A hidrelétrica sem saída


Por Lúcio Flávio Pinto
 
 . 01.06.11 - 19h28


A Câmara dos Deputados convocou na semana passada, em Brasília, uma audiência pública para debater a hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, projetada para ser a terceira maior do mundo. Todos os convidados compareceram, exceto os que não podiam faltar: o governo federal, responsável pela concessão da obra, e o consórcio Norte Engenharia, vencedor da concorrência para construir a usina. Sem as duas presenças, o encontro se frustrou.

Tem sido esta a regra. Sempre que julgam desfavorável a situação, os responsáveis pelo empreendimento evitam o confronto e escapam à controvérsia. A história do projeto de aproveitamento energético da bacia do Xingu, que tem um dos maiores potenciais de geração do país, tem sido de desvios e ziguezagues.

As pedras de maior volume no caminho da execução do projeto têm sido deixadas pelo Ministério Público Federal do Pará. Em dez anos, o MPF ajuizou dez ações contra a realização da obra. Ganhou a maioria das iniciativas em primeira instância, mas perdeu todos os recursos no Tribunal Regional Federal. O juiz federal singular se sensibiliza pelos argumentos apresentados, mas o relator na instância superior e o colegiado revogam as decisões proferidas.

Depois de tantos entreveros judiciais, a Norte Engenharia representou contra o mais destacado dos seus adversários dentre os procuradores da república baseados em Belém, Felício Pontes. O Conselho Nacional do Ministério Público está apreciando a alegação da empresa, de que o procurador não tem isenção de ânimo para continuar a defender o interesse público no contencioso.

As provas? O que ele escreve contra Belo Monte no seu blog (hereticamente acoplado ao portal do MPF, segundo o entendimento dos denunciantes, que têm, contudo, seu próprio blog no portal do governo) e o que declara à imprensa, sempre disposta a ouvi-lo e lhe reservar bons espaços. A Norte Energia quer convencer os pares do procurador que ele se tornou obsessivo no combate a Belo Monte, não importando os motivos que possa vir a apresentar.

A empresa tem o direito de suscitar a suspeição de Felício Pontes por parcialidade, tendenciosidade ou interesse pessoal na causa. Mesmo que ele seja afastado, porém, é certo que seu substituto, do quadro do MPF no Pará, dará continuidade às demandas contra o projeto. Ele só sairá das pranchetas para as margens do Xingu se os recursos dos seus executores continuarem a ser acolhidos pelos tribunais.

É possível que ainda neste semestre (porém não mais em maio, como estava previsto) o Ibama libere a licença de instalação para que, finalmente, o rio Xingu comece a ser desviado do seu curso natural pela primeira grande intervenção humana no seu leito: a ensecadeira de terra. Não significará, entretanto, que a opinião pública estará convencida do acerto do projeto.

Depois de 35 anos de estudos e levantamentos de campo, pode-se perceber que a trajetória irregular de Belo Monte se deve tanto à resistência dos seus críticos e adversários quanto às inconsistências e inseguranças dos idealizadores da obra.

Quando não puderam evitar o debate público, imposto pela própria legislação ambiental, através das necessárias audiências públicas, que antecedem o licenciamento, eles recuaram em certos momentos e modificaram o desenho da hidrelétrica. Deram motivos, portanto, para o ceticismo, a desconfiança, a dúvida e a própria condenação ao projeto.

Na posição oposta, os “barragistas” e seus aliados desacreditam os adversários apontando-os como quintas colunas, defensores de interesses – ocultos e ilegítimos – de alienígenas, em especial de concorrentes do Brasil, e de serem “ecoloucos” ou, quando nada, poetas, visionários, pessoas completamente desligadas da realidade, desconhecedoras do que é construir uma grande usina de energia. Daí o tom arrogante e auto-suficiente dos engenheiros, como na representação contra o procurador federal paraense.

Abstraia-se toda a questão ecológica e etnológica. Admita-se, em princípio, que os “barragistas” têm razão: o represamento do Xingu não irá causar grandes danos ambientais (todos passíveis de prevenção ou reparação) e que o prejuízo às comunidades indígenas atingidas será mínimo, assim como à população de Altamira, a maior cidade da região, situada às proximidades das barragens. O balanço dos prós e contras de mais esse aproveitamento hidrelétrico seria, assim, superavitário. Logo, ele tem que ser executado. Para o bem de todos e felicidade geral da nação.

Mas funcionará mesmo? Esta pergunta, elementar, continua sem resposta. Na concepção original, Belo Monte, para ser viável, teria que contar com outros reservatórios a montante do rio. As três barragens previstas, anteriormente, inundando uma área cinco vezes superior à de Tucuruí, responsável pelo segundo maior lago artificial do Brasil, acumulariam água no inverno para suprir a usina durante o verão amazônico, quando a estiagem reduz o volume do Xingu em 30 vezes.

Sem essas bacias de acumulação rio acima e com a redução do lago da própria usina, Belo Monte não terá água suficiente para funcionar durante metade do ano. Por isso, sua potência firme (a energia disponível em média) será inferior a 40% da capacidade nominal, abaixo do ponto de viabilidade.

Para que o lago formado pela barragem de Belo Monte fosse o menor possível, foi necessário formar reservatórios nos dois canais artificiais de desvio de água para a casa de força, onde estarão as enormes turbinas de energia, 40 quilômetros rio abaixo, as maiores do mundo. A formação desses canais exigirá mais concreto do que o usado no Canal do Panamá, uma das maiores obras da engenharia mundial. Tais muralhas garantirão que não haverá vazamentos? É mais uma dúvida.

Uma – dentre tantas – que fizeram o orçamento de Belo Monte subir de R$ 19 bilhões para R$ 25 bilhões e, agora, R$ 28 bilhões, já chegando às estimativas mais pessimistas, de R$ 30 bilhões, que seus construtores diziam ser um absurdo. E sem contar mais uns R$ 15 bilhões (ou 20?) na enorme linha de transmissão de energia, de três mil quilômetros, que não está incluída no cômputo da Norte Energia.

Fica, pois, a pergunta seminal: Belo Monte é viável mesmo?

p.s.: Este artigo já estava escrito quando a Norte Engenharia anunciou ter obtido hoje, dia 1º, a Licença de Implantação de Belo Monte.

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