sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Trabalho Escravo: Comissão Pastoral da Terra (CPT) alerta para denúncias não fiscalizadas na Região Norte

trabalho escravo
Em 2009, quase metade das denúncias do Norte não foi fiscalizada. “Esses prováveis escravos não chegaram a entrar nas estatísticas porque ninguém foi lá para ver”, destaca Xavier Plassat, da Comissão Pastoral da Terra (CPT)
Por Bianca Pyl e Maurício Hashizume*, da Agência de Notícias Repórter Brasil.
A Campanha de Combate ao Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgou dados sobre denúncias, casos registrados e libertações de 2009. Dos 4.274 trabalhadores encontrados em condições análogas à escravidão no país no ano passado, 1.582 (37%) foram libertados na Região Sudeste – com destaque para o Rio de Janeiro, com 715 (16,7%) registros.
Em 2008, a Região Sudeste foi palco de 555 libertações – 10,5% das 5.266 pessoas que foram retiradas no mesmo ano desta situação caracterizada pela subtração da dignidade básica do ser humano.
Para Xavier Plassat, coordenador da campanha da CPT, os números relativoa a 2009 revelam dois efeitos. O primeiro é o “efeito canavial”. “Em nível nacional, observamos que metade dos libertados nos últimos três anos foram nos canaviais. E quando a libertação se dá no canavial, não são três ou quatro pessoas. São 200 ou 500 pessoas. Bastam poucos casos para que esse setor apareça com destaque nos dados estatísticos”.
O outro efeito está ligado à maior abrangência das operações dos auditores fiscais, isto é, “um empenho maior da fiscalização em regiões onde os fiscais não chegavam para averiguar a questão do trabalho escravo”.
“Não significa necessariamente que a escravidão se espalhou para esse estados. Significa que, pela primeira vez, estamos revelando a sua existência graças a uma fiscalização”, completa o frade dominicano. Mais de 38 mil pessoas foram libertadas de 1995 a 2009, de acordo com o balanço.
Como pontos preocupantes, Xavier destaca que apenas uma entre duas denúncias de trabalho escravo colhidas na Região Norte foram averiguadas. ”Ou seja, aqueles prováveis escravos que a denúncia apontava não chegaram a entrar nas estatísticas porque ninguém foi lá para ver”.
O levantamento da CPT apresenta números um pouco acima da somatória oficial do governo federal, pois a pastoral considera casos não necessariamente contabilizados pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Assim como a organização não-governamental (ONG) Repórter Brasil, a CPT faz parte da Comissão Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) como entidade representante da sociedade civil.
Confira trechos da entrevista concedida por telefone para o programa semanal de rádio Vozes da Liberdade, no início deste mês de fevereiro, por Xavier Plassat, que mantém base em Araguaína (TO):
Confiscar a terra que foi instrumento da escravização é decisivo, diz Xavier (Foto: Verena Glass)
Repórter Brasil – Qual é a avaliação geral sobre os dados de 2009?
Xavier - Existe uma tendência do crescimento de libertações nas Regiões Sul e Sudeste. Em 2009, houve uma explosão: 37% dos libertados estavam no Sudeste. Foram libertadas, portanto, 1.582 pessoas nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo.
Na minha opinião, são dois efeitos. Primeiro, essas libertações foram, especificamente, em canaviais. Então temos o efeito canavial. Em nível nacional, observamos que metade dos libertados nos últimos três anos foram nos canaviais. E quando a libertação se dá no canavial, não são três ou quatro pessoas. São 200 ou 500 pessoas. Bastam poucos casos para que esse setor apareça com destaque nos dados estatísticos.
O segundo efeito é o envolvimento crescente na fiscalização do trabalho escravo dos fiscais das antigas Delegacias Regionais do Trabalho (DRTs), chamadas hoje de Superintendências Regionais do Trabalho e Emprego (SRTEs).
Em 2009, nós chegamos a um recorde: mais da metade das libertações e das operações de combate ao trabalho escravo foram realizadas por equipes locais. Nós temos, então, a conjugação de um empenho maior da fiscalização em regiões onde os fiscais não chegavam para averiguar a questão do trabalho escravo. Isso explica porque, pela primeira vez em 2009, nós temos casos em praticamente todos os estados do Brasil.
Não significa necessariamente que a escravidão se espalhou para esse estados. Significa que, pela primeira vez, estamos revelando a sua existência graças a uma fiscalização. Tem uma contrapartida a isso, inclusive um pouco negativa: em 2009, a Região Norte sofreu um déficit de fiscalização.
Poderia nos dar mais detalhes sobre esse problema do déficit?
Falo déficit de fiscalização quando comparo o número de denúncias de trabalhadores que fugiram de fazendas e procuraram o sindicato, a CPT ou outras entidades ligadas aos direitos humanos para dizer: “os fiscais precisam ir até o local porque não aguentamos mais”.
O número de denúncias em 2009, na Região Norte, foi de 113, e as fiscalizações foram 62. Praticamente uma em cada duas denúncias não foi fiscalizada. Ou seja, aqueles prováveis escravos que a denúncia apontava não chegaram a entrar nas estatísticas porque ninguém foi lá para ver.
Enquanto no Sul e no Sudeste praticamente todas as denúncias foram fiscalizadas. E são muito menos no Sudeste e no Sul. Nós tivemos conhecimento de, no máximo, 20 a 30 denúncias desse tipo em cada uma dessas regiões. No Centro-Oeste, foram 38, no Nordeste, 40, enquanto no Norte, 113. Em 2008, foram 131 denúncias na Região Norte. E a taxa de fiscalização também não foi superior a 60% – mais precisamente 88 atendimentos.
Ou seja, a despeito dos números chamativos da cana-de-açúcar, o trabalho escravo ligado à pecuária e à produção de carvão vegetal nas regiões de fronteira agrícola do país continua sendo significativo. Como fazer para atender essas duas frentes, sem que haja prejuízo?
Temos que discutir com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) para agilizar uma fiscalização muito mais rápida e mais eficiente em regiões de difícil acesso. Em segundo lugar, temos que ver como remanejar equipes do grupo móvel de fiscalização para que atender essas necessidades. Na hora do planejamento, é preciso manter uma vigilância grande para que não se deixe sem atendimento regiões tão importantes [de fronteira agrícola] e onde, em geral, os casos de trabalho escravo são, inclusive, mais violentos, mais cruéis.
Em terceiro, temos que continuar apostando na fiscalização pelas equipes regionais. Eu recentemente conversei com a direção do grupo móvel e uma orientação para 2010 será justamente destinar, de forma prioritária, as equipes do grupo móvel para a Região Norte e reforçar o potencial de fiscalização das SRTEs do Norte e de incentivar as SRTEs do Sul, Centro-Oeste e Sudeste em continuar se envolvendo cada vez mais nas fiscalizações.
Mesmo com números expressivos da repressão ao crime, o problema ainda persiste. Como quebrar o ciclo do trabalho escravo no Brasil?
O trabalho escravo continua porque continua a disponibilidade de grandes contingentes de mão de obra que não encontram alternativas de emprego decente nas regiões onde vivem. E continua porque o empregador aposta na possibilidade de “arrancar o couro” do trabalhador quando eles vêm de longe e estão desprotegidos, em situação de vulnerabilidade.
O primeiro aspecto exige uma ação radical de geração de emprego, de qualificação profissional, de facilitação de reforma agrária e do acesso à terra nas regiões de origem, no Nordeste - Maranhão, Piauí, Alagoas, Bahia -, no norte de Minas Gerais, no Tocantins, e em algumas regiões do Pará e do Mato Grosso, de onde vêm esses trabalhadores rurais.
Os trabalhadores, na maioria dos casos, não são trabalhadores residentes daquela região de onde são libertados. Mesmo quando eles são libertados no Paraná, eles vieram do Vale do Jequitinhonha. Quando são libertados em São Paulo, eles vêm da Bahia, de Alagoas, do Tocantins ou do Maranhão. Significa que o problema é lá: está na região de origem.
O segundo aspecto é intensificar não somente a fiscalização, que é o primeiro passo da repressão, mas também a punição. A prisão começa a aparecer como uma pena, enfim, definida pela Justiça Federal. Em 2009, tivemos mais de 35 condenações. O impedimento de comercializar, de receber financiamentos, por meio da “lista suja” do trabalho escravo e do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo também é importante.
Mas existe um passo simbólico, uma queda de braço entre os que no fundo continuam defendendo essa prática como meio de lucrar e os que se recusam a aceitar esse crime em pleno século XXI, que é o confisco da terra.
A aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438/2001 seria um recado claro para todo mundo: “a propriedade nunca pode ser colocada acima da dignidade do trabalhador e da vida”. Confiscar a terra que foi instrumento da escravização seria um sinal decisivo de que, em nenhuma hipótese, a terra, a propriedade, pode ser usada para escravizar a vida alheia.
Fonte:  Agência de Notícias Repórter Brasil, publicada pelo EcoDebate, 26/02/2010
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